...não é gago.
Guardião Carlos Ferreira recorda episódios de amor à camisola
RUI GUIMARÃES
O autocarro que levou o ABC até Irún tinha deixado o Flávio Sá Leite, em Braga, há poucos minutos e, quando todos tentavam não deixar escapar o sono e continuar a dormir (eram cerca de 7h30), Carlos Ferreira lia a edição do dia de O JOGO. E, de repente, inquietou-se. E muito. Em causa, algumas declarações de Fernando Correia, autor de um livro que comemora os 100 anos do Sporting.
Tudo se resumia à resposta dada à última questão colocada ao conhecido jornalista da TSF e que tinha a ver com as modalidades amadoras dos leões, na qual, entre outras coisas, Fernando Correia refere que "já não há tempo para amar a camisola", que "se não pode pagar acaba com as modalidades" e ainda que "os atletas é que não querem competir por amor ao clube, como antigamente".
Pois bem, o guardião do ABC, que nunca escondeu a sua cor clubista, sentiu-se e fez questão de responder.
"Como sportinguista, ex-atleta e ex-capitão do Sporting, quero expressar o meu lamento pelas palavras do jornalista, escritor e sub-director do jornal do Sporting. E pergunto: Acabar com as modalidades amadoras do Sporting porquê? Será que o orçamento das amadoras dá para pagar sequer a um jogador de futebol profissional? É que profissionalismo não é só um estatuto, mas sim uma maneira de estar e sentir o desporto que se pratica. Ou será que profissionalismo é insultar o treinador, não cumprir os regulamentos internos do clube e dizer que não se quer jogar ou dizer que não reconhecem o seu valor no clube porque se ganha pouco? Sem querer generalizar, e falo por experiência própria, pelos 20 anos de andebol sénior, onde fui campeão em todas as equipas, ter amor à camisola é jogar lesionado, com entorses, fracturas, gripes, febres, hérnias ou lesões que tais e, já agora, devo dizer que mialgias não existem no vocabulário das amadoras. Ter amor à camisola é viajar no próprio dia do jogo, fazer viagens de horas intermináveis, desde avião, comboio e autocarro numa só deslocação, comer no McDonald's de madrugada e sob temperaturas negativas ao ar livre, porque nada mais há e levar comida de casa. Ter amor à camisola é dormir em hotéis duvidosos, sem aquecimento, sem água quente, com lençóis comidos por baratas e sabe-se lá que mais e ter, por isso, de dormir vestido. Tudo isto em vez de termos voos charter, hotéis luxuosos e cozinheiro particular. Se isto não é amor à camisola, então não sei o que é?", disse, de uma assentada, o internacional A português, que continuou praticamente sem se deter: "Se calhar, e digo se calhar, é por pessoas como este senhor que o nosso belo país tem a mentalidade e cultura desportiva que tem, já que tudo é futebol em Portugal, onde se fazem todos os sacrifícios apenas para se levantarem belos e estrondosos campos de futebol. Mas este é um país onde as amadoras trazem títulos e medalhas que não vale a pena enumerar por serem muitas e do conhecimento geral, e no qual as federações têm de pagar às televisões para que os jogos dos que têm amor à camisola sejam transmitidos, seja na TV pública ou não e muitas vezes nem assim...".
Ordenados em atraso e... campeões
Carlos Ferreira, que passou horas a falar sobre o mesmo assunto, deu ainda mais exemplos sobre aquilo que considera ser o verdadeiro amor à camisola e não deixou de falar em... dinheiro que ficou meses sem aparecer.
"Nestes longos e bons 20 anos, eu e outros atletas, com família constituída, estivemos vários meses com salários em atraso e nem por isso viramos a cara ao clube e ao emblema que representávamos, sem greves, sem rescisões, mas sim com dedicação e respeito pela camisola que vestíamos e fomos campeões". Para o guardião do ABC, de 39 anos, "ter amor à camisola é treinar duas/três vezes por dias, ter oito treinos por semana e fazer nove ou dez jogos por mês. Não é só beijar o símbolo. É senti-lo, sofrer e viver por ele".
A finalizar, pelo menos para O JOGO, Ferreira lembrou-se de um episódio passado com Fernando Correia: "Recordo um programa feito por esse senhor em Viseu, por alturas do Mundial de andebol em Portugal, em que dei por mim a considerá-lo com respeito como um pessoa do Desporto. Mas lamento verificar agora que estava errado e perceber que é apenas mais um senhor do futebol. Desde já me retrato por qualquer incorrecção da minha parte e queria pedir-lhe que reveja a sua posição, que respeite mais as modalidades amadoras e o verdadeiro amor à camisola. E sim ao ecletismo no Sporting e em todos os outros clubes! Ai se eu pudesse...".
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